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EUNICE KATUNDA… HOJE!
[Palestra no Auditório da Escola de Música/UFMG, 3 de Outubro de 2007]
Agradeço o convite para estar aqui hoje, participando deste importante evento organizado por musicistas tão competentes, como o são as professoras Ana Claudia de Assis e Guida Borgoff. E é com grande prazer que retorno a esta escola.
Prometo não fazer uma conferência longa e sobrecarregada de nomes, datas e referências de toda ordem…
Meu objetivo hoje é mais preciso e localizado. Desejo propor algumas reflexões à titulo de introdução desse belo concerto, que será realizado a seguir.
Introduzir sim, mas com uma intenção. Com a intenção de que, ao tomarmos contato com algumas particularidades da trajetória de Eunice Katunda, possamos refletir sobre o paralelo possível com nossas trajetórias atuais, junto à realidade que habitamos.
O titulo que dei esta minha fala é “Eunice Katunda… hoje!”.
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Nossa capacidade de entender o que chamamos corriqueiramente de “Movimento Cultural” implica em percebermos justamente as mudanças e mobilidades operadas em nosso tempo.
Um pouco acima, um pouco abaixo do tempo-espaço que habitamos ordinariamente.
Esta é a instância especial que nos permite evidenciar a cultura se movimentando.
É a partir desta percepção que podemos identificar o processo vital que decorre das manifestações criativas e assim estarmos em medida de apreender a força dinâmica da consciência que delas emana.
Sem a percepção desse movimento e a história de seu traço – que seja artístico, cultural, pedagógico ou outro – não há de fato compreensão legítima da música nem tampouco da vida. Simplesmente porque: tanto uma quanto outra não são fatos estanques, ou seqüência de instantes fixos, mas sim, como tão bem sabemos, processos interrelacionais em contínua atualização.
E Eunice Katunda é fruto legítimo de um dos mais importantes movimentos musicais que ocorreram entre nós no sécilo XX : o movimento Música Viva.
Criado no Brasil em 1938, o movimento Música Viva teve suas atividades mais significativas iniciadas concretamente no ano seguinte (1939).
Elas se organizaram em torno de 3 eixos fundamentais:
- Formação – representada sobretudo por ações educativas de diferentes naturezas (cursos, audições comentadas etc),
- Criação – composição de obras musicais
- Divulgação – interpretação de música, publicações, edições, etc
O que verificamos de 1939 a 1952, aproximadamente, é sobretudo a construção de uma escola de pensamento. Uma escola que para sua construção recorreu a várias iniciativas, em boa parte, completamente originais para a época.
E dentre as muitas atividades levadas a cabo podemos mencionar:
- publicação de boletins (“Boletins Música Viva”, órgão oficial de divulgação do trabalho do grupo),
- edição de partituras (de jovens compositores da época, mas também de alguns consagrados como Villa-Lobos ou em vias de reconhecimento nacional, como Camargo Guarnieri, etc),
- realização de programas radiofônicos (com várias séries, contemplando ampla gama de estilos e momentos da história ocidental, da música antiga à música contemporânea),
- e… apresentações musicais, cursos, conferências, debates, etc etc.
Pela força das idéias e pelo impacto de suas ações este movimento se constituiu na “Segunda Fase da Modernidade Musical” brasileira.
O líder da Música Viva brasileira foi o músico alemão Hans-Joachim Koellreutter, que chegou no Rio de Janeiro em Novembro de 1937 e com quem Eunice começou a ter aulas desde 1946.
Foi no âmbito justamente desse importante movimento que ela se projetou, ao participar de ampla gama de eventos, como pianista e logo em seguida como compositora.
Ao lado de Gení Marcondes – pianista participante da ala paulista (pois o movimento instalou-se inicialmente no Rio de Janeiro e a seguir em São Paulo) –, Eunice mostrou-se a musicista mais atuante na interpretação de obras de compositores brasileiros e estrangeiros, nas emissões radiofônicas do programa “Música Viva“.
Segundo as pesquisas que realizei, este programa foi levado ao ar semanalmente pela “PRA-2 – Rádio Ministério da Educação”, do Rio de Janeiro, de 13/Maio/1944 ao início de 1952.
E o nome de Eunice Katunda esteve sempre lá. Ele figura progressivamente com mais regularidade nas diferentes séries produzidas à partir deste programa, entre elas “Antologia de todos os estilos musicais”, “Obras primas de nossa época”, “Música contemporânea ao alcance de todos”, “Música de nosso Tempo”, entre outras.
Eunice foi também a única mulher a integrar o grupo de compositores Música Viva, ao lado de Cláudio Santoro, César Guerra-Peixe, Edino Krieger e naturalmente Koellreutter.
E é junto com eles (e mais outros músicos) que assina o “Manifesto 1946”, o famoso manifesto “Música Viva” publicado no boletim no12 e lançado logo no inicio de 1947. Assim, ele comemora hoje seus 60 anos de idade (e guarda ainda a meu ver muita atualidade)!
A cantata “Negrinho do Pastoreio”, composta já em 1946 é a primeira obra de Eunice criada sob a orientação de Koellreutter. Ela recebe o prêmio “Música Viva” neste mesmo ano e se tornará desde então uma de suas obras mais conhecidas, no Brasil e no exterior.
Desde esse momento tem inicio um processo de reconhecimento amplo do talento, seja como intérprete, seja enquanto compositora, reconhecimento que podemos observar em diversas noticias e comentários da época.
Destaco aqui o do famoso regente Hermann Scherchen -ex-professor de Koellreutter – e criador da Música Viva na Europa, em 1933.
A iniciativa de Scherchen serviu de referência para a concepção do movimento Música Viva brasileiro, e, embora com características formais distintas, veiculou uma mesma filosofia, compartilhou dos mesmos princípios e ideais.
Scherchen se consagrou por suas famosas interpretações e estréias mundiais de obras de compositores contemporâneos como Schoenberg, Berg, Webern, Werner-Henze e inúmeros outros.
Ele escreve em carta à Eunice Katunda datada de Zurique, 28 de Março de 1949:
Minha querida Amazonas,
Sua carta me deixou muito triste
[ Eunice havia lhe comunicado sua intenção de retornar ao Brasil ].
No entanto, espero que você tenha recebido minha proposta e que decida aceitá-la.
/…/
Eu gostaria muito de reger a peça de Bruno no Congresso dos Dodecafonistas em Milão, no 4 de Maio, tendo você como solista.
[Referência ao famoso compositor italiano, Bruno Maderna]
Mas devo ter notícias imediatamente de Bruno, e suas em relação à minha proposta de que seja solista.
Conto com você para vê-los todos /…/ em Roma.
Muito cordialmente e amicalmente, seu H.Scherchen [assinatura]
[Zurique, 28/03/1949]
Mas Eunice obteve também largo reconhecimento enquanto pessoa artística e intelectual, conhecedora dinâmica da cultura brasileira….
Anos mais tarde, o importante compositor italiano de música nova Luigi Nono – que em seu trabalho compositivo integrou de maneira original, pesquisa estética, serialismo e compromisso político -, faz uma interessante referência ao período em que conviveu com Eunice na Itália. [1]
Devido à importância do comentário, acrescido ainda do fato de ser Katunda a única brasileira mencionada em seu livro Écrits, reproduzo, traduzindo com certa liberdade, 2 de seus trechos:
“Em 1948, enquanto Scherchen dava seu curso de direção de orquestra, chegou à Veneza um grupo de brasileiros provenientes de uma escola que tinha sido fundada e dirigida no Brasil por Koellreutter /…/ Entre eles, havia uma pianista-compositora de grande talento, que se chamava Eunice Catunda. Ela era metade índia de Mato Grosso e Scherchen favoreceu uma espécie de amizade entre ela, Bruno Maderna e eu. /…/ Com Catunda, havia então uma profunda identidade de visão e através dela tivemos as primeiras informações sobre os ritmos de Mato Grosso, antecipando, num certo sentido, a lição que nos viria de Varèse. [2]
Nono faz referência aqui a Edgar Varèse, um dos compositores mais revolucionários da primeira metade do séc.XX, que influenciou fortemente a produção musical européia e dos Estados Unidos.
“/…/ Assim nasceu o primeiro epitáfio [sua peça “Epitáfio a Frederico Garcia Loca”] e é singular que essa obra, assim como “Polifonica-Monodica-Ritmica” [outra composição de Nono], seja baseada num canto brasileiro. Desse último trabalho, todos diziam que se baseava em Webern.
E Anton Webern, foi, como sabemos, o compositor dodecafonico mais original da “Segunda Escola de Viena”, inaugurador da linguagem serial que determinou a produção moderna desde os anos 50.
E Nono retoma ….
“Mas este trabalho em realidade se baseou num Canto de Iemanjá (a deusa do mar), que nos foi ensinado justamente por Eunice.” [3]
[Écrits, pp.53-54]
Vemos assim que as menções feitas a ela, seus talentos e qualidades são muitas e projetam-se continuadamente ao longo das décadas seguintes.
No entanto, … o que eu gostaria de abordar aqui nesse momento não é exatamente a trajetória de Eunice Katunda, sua historia e seu passado (Momento em que viveu e que deliberadamente ajudou a construir) … Mas sim o que pode haver de presente nela para nós hoje ! [4]
E considero que, mesmo de maneira sutil, seja possível perceber, em parte de nossas inquietações conceituais contemporâneas, a sua brisa, assim como em realizações musicais atuais, os fundamentos dessa história que herdamos.
Apesar disso, entretanto, pouco ainda tentamos decifrá-la e assim se instalam algumas dificuldades para a compreensão do que nela seja legitimo incluir e o que mereça ser transcendido, para que no âmbito da história da cultura e da música se possa ir um pouco mais além.
Vou tentar me explicar um pouco melhor e recorrerei para isto, a um único ponto, a um dos que considero mais essencial.
………………
Entre as diversas influências recebidas por Eunice Katunda – tanto no plano estético, quanto no ideológico – duas a meu ver foram decisivas e determinantes: a de Mário de Andrade e a de Hans-Joachim Koellreutter.
Quase lideranças espirituais, estas influências se fizeram, entretanto em contraponto intenso, com alguma alternância ao longo da fase artística mais consolidada e da fase criativa mais fecunda de sua produção, … isto é de 1945 a 1975 (aproximadamente).
E Eunice, distinguida por um reconhecimento impar no meio artístico-musical contemporâneo, seduz e é seduzida pelas duas tendências artísticas mais representativas da época:
Aquela representada pelo “Nacionalismo”, reivindicando a pesquisa estética a partir da Tradição da Cultura Brasileira e liderada justamente por Mario de Andrade; e …
A outra, ilustrada pela “Música de Invenção”, inaugurando novas experimentações da linguagem musical e encabeçada por Koellreutter.
Ambos insistiam sobre a necessidade urgente de um novo entendimento da música brasileira e, em conseqüência, de uma modificação radical de postura do músico contemporâneo.
Um novo momento se rapidamente se criava e tomava forma e a necessidade de visões de mundo e de atuação mais pertinentes se impunha.
O lema de Mario prontamente incorporado no discurso de Koellreutter era “Somos os primitivos de uma nova era.”
Para Mario…
1. A Criação musical deveria ser livre e original… mas em sintonia com a idéia de “Nação”. Portanto, uma música com personalidade genuinamente brasileira.
Koellreutter, por sua vez…
1. Endossava a idéia de uma Criação musical livre e brasileira, mas… alinhada com as novas tendências mundiais. Portanto, com personalidade contemporaneamente original.
Mario…
2. reivindicava uma Música enquanto fenômeno da Cultura, que com Expressão própria (local e regional) se baseasse nas Riquezas da Tradição Popular, de todos os tempos (presente e passado)
O líder da Música Viva…
2. reclamava uma Música enquanto Linguagem – a “Música pela Música”, criação baseada nas Conquistas da Tradição Internacional, na Música Nova de todas as épocas
Para os nacionalistas
3. O Musico brasileiro era a representação do Povo e sua música a Expressão legitima dessa terra, desse pais … decorrendo daí uma arte com “Sensibilidade própria e autêntica”
Para os universalistas
3. O Musico contemporâneo era a “antena da Raça” (da cultura e da civilização), sua música a Expressão viva de sua época, de um novo estado de inteligência e de consciência … decorrendo daí uma arte com “Modernidade internacional e atual”.
Para uns …
4. “Música Moderna mas Nossa”
Para outros …
4. “Música Nossa mas Moderna”
Estas concepções de música e de músico no Brasil da época expressaram pólos de importância particulares. Segundo a visão nacionalista de Mario a referência central era a “Terra” e as características de uma cultura própria habitando seu Espaço especifico. Para Koellreutter, o pólo de referência era o “Tempo”, as características do estagio de conhecimento daquele momento. Espaço e Tempo, eixos fundamentais distintos, ate este momento ainda não compreendidos como complementares porém … sempre referenciados no Presente…. Contemporâneos.
Até aqui podemos encontrar complementaridade, possibilidade de convergência.
No entanto estas interpretações se apoiaram, com a coerência possível, em linhas e recortes, em delimitações de um campo de funções e de uma situação de realidade, alimentadas fortemente pelas correntes ideológicas vigentes.
……
Mas, se traçados e cartografia são importantes para a nossa compreensão do mundo, o território de significados e de conteúdos que lhes serve de base é porem essencial.
Quero dizer que, se aqui nesse espaço momentaneamente único da sala traçarmos uma linha vertical [ traçar linha com a mão no espaço da sala ], passaremos então a partir dela a considerar duas classes, por exemplo o nicho que se encontra a direita dessa linha e o que se encontra a sua esquerda, assim como a classe de pessoas do lado de cá e as do lado de lá.
Criamos assim nessa referência estabelecida do exterior um nível de diferenciação sobre um campo de realidade amplo, complexo e profundo, onde inúmeras outras particularidades existem e podem ou não serem levadas em conta.
Há uma razão de ser e uma funcionalidade no campo de conteúdos e significados que é anterior ao mapa traçado, há algo mais profundo que não deve se perder, substituir ou confundir, mas sempre que necessário ser posto em evidência.
A divisão entre “Música Nacional” e “Música Universal” e especialmente entre “Músicos Progressistas” e “Músicos Reacionários” (na abordagem política que revestiu suas concepções originais), acabou por se tornar um traçado que desuniu o território. Território que vinha se construindo de maneira gradual, graças às iniciativas empreendedoras do movimento “Música Viva”, das descobertas nacionalistas e ao trabalho de experimentação e de síntese de linguagem conduzidos por compositores como Guerra Peixe e Luiz Cosme, por exemplo.
As divergências progressivamente acentuadas entre estas 2 tendências de postura e de pensamento acabaram por provocar forte ruptura no ambiente brasileiro artístico e musical dos anos 50. Geraram a implosão do Grupo de Compositores “Música Viva”, bem como a posterior dissolução do Movimento MV tanto no Rio quanto em São Paulo.
O elemento deflagrador desse processo foi a “Carta Aberta aos Músicos e Críticos de Musica do Brasil”, do compositor Camargo Guarnieri, pretendido sucessor de Villa-Lobos, que, divulgada em Novembro de 1950, constituiu-se na maior polêmica jamais presenciada no meio musical brasileiro.
Eunice Katunda, que até então se filiava as idéias de uma estética musical nova e experimental, sustentada pelo “Música Viva” (na figura de seu líder Koellreutter), migrará para um Nacionalismo musical marcadamente politizado.
Essa mudança radical de posição é expressa por ela em correspondência dirigida ao próprio Guarnieri, em 20 de Novembro desse mesmo ano (1950), cujo trecho final cito rapidamente aqui:
“… me ligo de novo ao nosso povo, a nossa musica; participo agora de maneira mais intensa e decisiva de seus problemas e de suas lutas. E é agora, cheia dessa sensação de estar finalmente voltando a vida real, que me dirijo a V. para lhe dizer que tem razão, que condeno tudo o que V. condena na “Carta Aberta aos músicos”. /… (ela oferece a Camargo a possibilidade de utilizar sua carta como bem desejar, sugerindo mesmo que a publique) …/ “Expresso aqui minha solidariedade como também a de outros colegas, que estão dispostos a prosseguir nessa campanha de esclarecimento de nossa juventude, contra os perigos das falsas atitudes estéticas que geralmente servem de meio para solapar as bases filosóficas, para desviar a atenção dos verdadeiros problemas que a mocidade deve encarar, analisar e resolver.”
[CK. EK, musicista brasileira, p.143]
Temos o entendimento já desta polêmica e do processo histórico de rupturas que causou naquele instante no meio musical brasileiro, bem como suas conseqüências nas décadas seguintes.
(em especial carioca e paulista), subsidiado por informações do momento e do contexto histórico-político.
Mas para pensarmos “Eunice Katunda Hoje!”, gostaria de propor que experimentássemos com esse recuo atual uma interpretação um pouco mais diferenciada.
Isto porque conforme a visão da própria Eunice – expressa anos mais tarde (1985) – notamos que uma parte fundamental dessa problemática não chegou a ser satisfatoriamente tratada, conduzida e muito menos compreendida.
Ouvindo seu depoimento sobre o líder da Música Viva no Brasil…
“A Koellreutter devo principalmente a fase mais produtiva de minha vida musical. Fase em que houve uma coletividade, pois estávamos sempre juntos, participando de tudo, música, discussões. Quem proporcionou tudo isso foi Koellreutter. Foi o único. Quando se falar em escola brasileira aqui é Koellreutter. Não teve outro. Olha aí, Mignone fez escola? Não, não fez. Camargo Guarnieri? O único que fez escola mesmo, assim de fazer todo mundo participar e ter cantores, flautistas, pianistas, todos juntos, estudando, o único foi Koellreutter.”
[Entrevista para o autor, 1985. Grifos meus]
E sobre o Papa do Modernismo brasileiro…
“Mario de Andrade foi a personalidade mais importante de nossa geração. Eu o descobri através de Guerra-Peixe, e desde então seu Ensaio sobre a Música Brasileira (de 28) passou a ser meu livro de cabeceira, a minha Bíblia. Ele era brilhante, intelectual, poeta, uma pessoa completamente compromissada com o seu pais, com a sua cultura … e com a música!! Ele era a referência que guiava muitos dos compositores da época, fazendo a critica da música de Villa-Lobos e da contemporaneidade, ditando as bases da música brasileira que se esperava de todos nós.
[Entrevista para o autor, 1985]
……………
De maneira sintética, podemos considerar que o dilaceramento de muitos músicos do período, dos quais Eunice fez-se porta-voz, deu-se pela dificuldade de percepção do potencial de complementaridade e de integração de princípios na aparência opostos, bem como na hesitação em se dedicarem mais criativamente à conjugação da “Música Exterior” com a “Música Interior”.
No entanto, apesar das diferenças de visão de mundo representadas por essas duas tendências, tanto Mario quanto Koellreutter estavam igualmente convencidos do papel decisivo da música na transformação da realidade de seu tempo. Papel decisivo do musico na construção de uma nova condição humana, através de uma música daqui, nossa e nova, criada em sintonia com aquele tempo-espaço presente.
“Os artistas-criadores são os arquitetos do espírito humano.”
Essa frase parece poder contemplar a convergência de pensamento de ambos os lideres, para os quais o musico, o interprete e o compositor – na condição verdadeiramente criativa, e apenas nela! – representavam o elemento fundamental da tão necessária produção de movimento, a nível da cultura e da sociedade, da tão esperada transformação da realidade.
Movimento capaz de construir modernidade e atualização por meio de uma Arte e de uma Música liberta das modas estrangeiras, passageiras, dos clichês e do academicismo.
Só assim se poderia quem sabe modificar hábitos e comportamentos que há muito se mostravam ineficazes, retrógrados e anacrônicos no ambiente artístico e educacional e que tanto Mario quanto Koellreutter em diferentes momentos fizeram a critica severa.
É altamente significativo observarmos que o musico alemão Koellreutter reverenciará e se associará as reivindicações do poeta brasileiro Mario, re-editando nos últimos Boletins “Música Viva” longos trechos de seu famoso “Banquete”. Trechos nos quais se concentram justamente as denuncias de letargia do ambiente musical da época, a critica rigorosa e perspicaz de sonambulismo por parte dos principais agentes do meio artístico e as reflexões estéticas, das quais ele – Mario de Andrade – foi o inaugurador pioneiro entre nos.
Reflexões estéticas que Koellreutter a seguir tão insistentemente deu continuidade e que se tornaram uma de suas maiores características ao longo de toda a vida.
E estes foram também importantes pontos de identidade entre estas duas fases da Modernidade Musical no Brasil.
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Mas como havia dito, para pensarmos “Eunice Katunda Hoje!”, seria interessante experimentarmos uma interpretação diferenciada …
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O fundamento de todos os processos evolutivos e de desenvolvimento (a nível físico, biológico, sócio-cultural, espiritual ou outro…) encontra-se exposto em diversos postulados, dos quais 2 parecem-me especialmente pertinentes aqui : Transcendência & Inclusão; e… Totalidade & Parcialidade.
As iniciativas levadas a cabo em nome de altos ideais mas que não se articulam criativamente num nível superior e, ao invés da inclusão, promovem a exclusão foram e são, no meio artístico, animadas pela vaidade e outras disfunções do ego.
Da mesma maneira, gerou confusão de propósitos a não compreensão de que – individuo, musico ou artista – representa simultaneamente Totalidade e Parcialidade. Totalidade que se re-compõe a um nível superior em outras Totalidades maiores e mais complexas, nas quais se tornam assim Parte. Uma, apenas uma entre as várias partes integrantes de um Todo.
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A limitação de percepção, onde Meta se restringe a Objetivos efêmeros e transitórios e Essência se confunde com uma Superfície de interpretação, gerou e gerará sempre confrontos, combates e rupturas.
E, como todos sabemos, na criação e na arte não há nunca vencedores embora, quase sempre em diferentes circunstâncias, o Conhecimento e a Cultura tornem-se verdadeiros Perdedores.
Terminaria então essa minha fala, com uma citação de Mario de Andrade, retirada de sua palestra sobre o “Modernismo”, uma das últimas por ele proferida…
Que nós modernistas não sejamos exemplo para ninguém, mas que possamos sim servir de lição!
A meu ver, a lição de Eunice Katunda para nós hoje se encontra, em sua postura dedicada, competente e completamente investida das questões centrais de seu momento. Inteiramente convencida de que a música desempenha – e pode vir a desempenhar cada vez mais – uma função primordial para a vida… para a sua e para a de todas as pessoas.
E uma citação de Koellreutter, emprestada do “Manifesto 1946” …
Música é vida, música é movimento !“
Trazer da vida justamente o movimento fundamental para a música e para a cultura. Propiciar que todos, que todas as pessoas avancem as suas fronteiras, participando solidariamente do patrimônio musical e cultural constituído. Possibilitar igualmente a apropriação do que há de mais rico e atual nas criações contemporâneas, enquanto invenção, descoberta, sensibilidade, pensamento. Desta forma, a música pode cumprir o “Principio de Utilidade” marioandradiano, desempenhando seu papel de integração social, propiciando aos indivíduos mergulharem nas problemáticas de seu tempo, o “Tempo Presente”, e condições assim de melhor participarem da vida em sociedade.
Diferentemente de muitos artistas de seu tempo, Eunice considerou a música como fator de crescimento, integração, socialização. E acreditou sinceramente em seu poder de aprimoramento social e humano.
Nesse sentido, talvez a parte mais substantiva de nossa contribuição própria e pessoal, hoje, como profissionais da música e da educação, resida também na compreensão de que na música há algo alem da superfície dos sons. Há “algo mais” essencial a ser tratado …
“Algo a mais” … do que o prazer de compor…
“Algo a mais” … do que o prazer de interpretar…
“Algo a mais” … do que o prazer de fruir música !
Trata-se -essencialmente- de querermos escutar um pouco mais longe, um pouco mais perto…
Hoje!
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Questão: Como concebemos – enquanto professores, músicos e artistas brasileiros – nosso papel e função na sociedade de hoje? De que maneira – enquanto professores, músicos e artistas brasileiros – estamos conjugando “Tradição” e “Inovação”, e assim contribuindo atualmente para a transformação positiva dos espaços que habitamos?
[1] Referência feita em meio à uma coletânea de depoimentos reunidos no livro Écrits, textos reunidos e apresentados por L.Feneyrou, publicado na Coleção Musique / Passé / Présent.
[2] Écrits, pp.53-55.
[3] Conforme Nono afirma mais adiante, p.54, o Epitáfio a Frederico Garcia Lorca, deriva do material do canto de Iemanjá, ao qual ele acrescentou na segunda parte o ritmo e os sons do hino Bandeira Vermelha. Já em Polifonica-Monodica-Ritmica ele utilizou as dimensões rítmica e intervalar da melodia desse mesmo canto.
[4] Estudei e comentei muito já sobre Eunice Katunda. Penso que muitos de vocês conheçam já parte dos produtos que resultaram de vários anos de trabalho. Pesquisa, levantamento, organização e microfilmagem de programas de concerto, roteiros de aula, correspondências, composições, manuscritos de obras, textos escritos e esboços de textos jamais publicados, etc. Esses diferentes materiais, seu Catalogo de Obras e estudo, reuni no livro “Eunice Katunda, musicista brasileira”, publicado em 2001.